domingo, 9 de abril de 2017

MUITA GENTE NÃO ENTENDEU O PARÁ DA NOVELA DE GLÓRIA PEREZ. O PARÁ IMAGINÁRIO EM HORÁRIO NOBRE

Atriz Isis Val Verde alimentando o boto

Foi com uma visão aérea que se aproximava pela Baía do Guajará e seguia até a Feira do Açaí, no Ver-o-Peso, que a novela “A Força do Querer” estreou no horário nobre da TV na última segunda-feira, 4. Os personagens Eugênio (Dan Stulbach) e Caio (Rodrigo Lombardi) foram os primeiros a serem apresentados enquanto conversavam. Em volta deles, carregadores de açaí seguiam fazendo seu trabalho, e a dinâmica natural da feira provou ser uma boa escolha como cenário. 

Um telefonema feito por Eugênio e a trama foi de Belém para o Rio de Janeiro (onde a novela passa a se desenrolar de forma permanente por volta do 12º capítulo). Mais um telefonema, e estamos de volta ao personagem de Dan Stulbach, desta vez, em um rio no Acre. Sem precisar apelar para legendas, Glória Perez usa a música paraense (também tão em alta lá fora) para pontuar em que ambiente a trama estava nesse deslocamento entre Norte e Sudeste, com destaque para “Reino da Encantaria”, de Dona Onete.

A direção também trabalhou a favor do novo folhetim, com planos em sequência e uma cena com direito a tempestade e correnteza muito bem feitas para o momento que Ruy (João Gabriel Cardoso/Fiuk) e Zeca (Xande Valois/Marco Pigossi), ainda meninos, quase se afogam. O resgate é feito pelo índio Benki Piyãko, da tribo Ashaninka, localizada no Acre, convidado a participar da novela como ator. 

Talvez pela falta de experiência (ele é famoso mundialmente pelas palestras sobre a preservação da Amazônia e não por atuar), quase de forma mecânica, o índio faz aos dois meninos o anúncio crucial para o desenrolar da história: o rio que os uniu, um dia vai separá-los. E é do rio, nadando com botos, que surge Ritinha (Isis Valverde), sem falas, com Ruy a olhá-la de um lado, e Zeca a olhá-la de outro.

Tomando pelo que foi visto naquele primeiro capítulo, fora um detalhe aqui, outro ali, notado por paraenses mais atentos – como a barraca de bijuterias em plena Feira do Açaí e a expressão “estar brocado” que passa por uma redundância quando Zeca diz estar “brocado de fome” –, a presença de alguns atores paraenses – como Adriano Barroso, que acompanha o pai de Zeca na busca pelo menino no rio –, para falar com o sotaque esperado e o uso correto do pronome “tu”, também ajudou a equilibrar as coisas. 

Mas, claramente, a novela não deixou de fugir do imaginário estrangeiro. Logo no primeiro capítulo, além do índio, um jacaré foi visto no rio quando muitos nortistas passam a vida inteira viajando pelos rios amazônicos sem nunca ter visto um.

Muita gente não entendeu o Pará de Glória Perez

De início, foi a emoção somada à expectativa que deu tom aos comentários dos paraenses sobre a estreia de “A Força do Querer”, mas quanto mais gente passou a ver a novela e lembrar pequenos detalhes, começaram a chover comentários que vão do cômico ao repúdio. 

“A imagem do começo da novela ficou muito bonita, tudo verdinho dos peneiros. Achei legal a conversa deles no meio do povo passando. Minha família ficou me procurando e eu também, reconheci um monte de gente, mas não me vi”, lamentou Benedito Paulo, 45, carregador que trabalha há 20 anos na Feira do Açaí. 

Mas ali mesmo tinha noveleiro como a vendedora Silvana Barbosa, 24, que estranhou a cena em que Zeca compra um colar de uma barraca fictícia. “Na hora que vi lá em casa eu disse: essa barraca de colar não existe! E esse colar tava superfaturado, R$ 10! (risos)”, brinca a paraense. 

A emoção inicial passou até por uma simples referência ao nome da cidade. “Foi bacana quando ele (Zeca) levou um remédio para o pai dele e falou ‘esse só tem em Belém’”, diz estudante Luana Rodrigues, 20.

Nas redes, os comentários foram esquentando aos poucos. Após algumas piadas sobre o Pará de Glória Perez ser tão fictício quanto o Marrocos e a Índia criados por ela, respectivamente em “O Clone” e “Caminho das Índias”, as críticas começaram a pesar. “Saudades de estudarem para retratar corretamente a cultura de um estado. Vocês vieram em Belém e não perceberam que ninguém aqui fala ‘visse’? Cansada de sempre confundirem Norte e Nordeste. Pesquisem antes de divulgar coisas irreais, isso é uma falta de respeito com o povo”, reclamou a paraense Jéssica Pingarilho, no Facebook. 

Presente na trama, o ator Adriano Barroso aproveitou para pedir o olhar dos paraenses para os artistas da terra e sua produção. “Chateados em ser mal representados pela novela? Consuma mais a cultura do seu estado! Vá a teatros, compre livros, CDs, artes plásticas etc. Postura mais política que isso, não existe”. 

Alguns paraenses, como Jivago Lemos, aproveitaram a postagem para comentar: “Achei o sotaque e as gírias na novela muito parecidos com os falados em Castanhal (minha cidade) que tem essa diferença de Belém”.

Ele pontuou que isso se deve ao grande número de migrantes nordestinos que passaram a viver em Castanhal na época da estrada de ferro. “Falta ao belenense perceber também que o Pará não é só Belém. Existem ‘n’ dialetos em nosso gigantesco estado”, completou. 

E o óbvio também não passou despercebido. “Primeiro capítulo e já mostram jacaré na Amazônia. Três anos de biólogo e nunca vi um jacaré”, comentou Daniel Valentim, pelo Twitter. Outros ainda se deram ao trabalho de fazer “memes” do jacaré substituindo-o pelo dançarino Jacaré, do É o Tchan.

Outras coisas acabaram rendendo desde crítica até piada. “Ver a Ísis Valverde de Ritinha falando ao celular no Ver-o-Peso foi bem surreal. Por isso a minha desconfiança...”, tuitou Eveline Carneiro. 

E teve até amazonense que não gostou da fictícia “Parazinho” estar mais para Manaus do que para Belém. “Qual é o preconceito com Manaus que esse diretor dessa novela tem? Dizer que as cenas foram gravada em Belém?”, escreveu Larissa Melo, no Twitter, referindo à cena de Ritinha com os botos, gravada no Rio Negro, em Manaus.

Busca pelo exótico acaba em “licenças poéticas”

Não é a primeira vez que a Amazônia é cenário e inspiração para novelas. Em 2012, estreou no horário das seis “Amor Eterno Amor”, escrita por Elizabeth Jhin. A história começou a ser contada no Marajó, com direito a cenas de praias paradisíacas, carimbó em volta da fogueira e um “domador de búfalos” como protagonista. 

Em 2013, estreou “Além do Horizonte”, de Carlos Gregório e Marcos Bernstein, na faixa das sete. A novela era uma espécie de “Lost” na Amazônia, com três jovens que descobriam que aqui era um lugar cheio de elementos sobrenaturais, sociedades secretas e com um monstro chamado “a besta”. 

E o que estas produções têm em comum com “A Força do Querer” é simples: são produtos audiovisuais de ficção. Ou seja, eles têm direito à certa licença poética e a muitas vezes estar tão interessado em uma bela imagem quanto em ser verossímil. O problema é que certas escolhas costumam apostar muito mais no exótico.

José Augusto Lobato, jornalista e pesquisador paraense com doutorado sobre “A Representação do Exótico no Jornalismo e na Ficção”, diz que é preciso ter isso em mente quando vemos cenas de Ritinha nadando com os botos em um rio amazônico. “O autor usa os traços daquele lugar como recurso para tornar a novela atrativa, esse é o ponto fundamental”.

E retratar esse Brasil exótico para o próprio Brasil, como aponta a sua pesquisa, não é algo exclusivo da ficção. “Isso acontece inclusive no jornalismo. Vi isso com o ‘Globo Repórter’, que mostra o Serrado, o Pantanal, da mesma forma que mostra outros países. Tem diferença tratar como diferente de tratar como exótico”.

E assim é a questão da novela, embora também seja justo cobrar que o autor/diretor traga uma representação cuidadosa sobre a cultura abordada. “É um problema que você encontra em outros casos. Ouvi colegas em São Paulo – quando passava ‘Eta Mundo Bom!’ –, dizendo que o sotaque que eles faziam meio que os ridicularizava, tratando todo interiorano com caipira”.

ESTEREÓTIPO

Radicado em São Paulo, José Augusto conta que uma cena de “Amor Eterno Amor” marcou sua memória. Nela, uma personagem nascida na fictícia “Vila dos Milagres”, no Pará, vai ao Rio de Janeiro com o marido. “Ali os personagens começavam a interagir com o núcleo da novela ambientado no Rio. E mostrou ela se assustando com a escada rolante”. 
Para o pesquisador, mostrar a realidade belenense e amazônica como se fosse completamente afastada de uma grande cidade, muito mais interessado no efeito visual ou no exótico, pode ainda agir como forma de reforçar um estereótipo. Foi o caso do uso de botos, jacaré e índio, tudo logo no primeiro capítulo de “A Força do Querer”. “Reforçar estereótipos é perigoso e de fato deve ser cobrado, criticado, para além da licença poética que uma novela tem direito”.

(Lais Azevedo/Diário do Pará)

Fonte: DOL

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