Oitenta batimentos por minuto. Às vezes, 90. Raramente, 120. Nessa frequência e sem grandes sobressaltos, bate atualmente o coração de Eloá Cristina Pimentel, morta em 2008 pelo ex-namorado Lindemberg Alves – condenado nesta quinta-feira (16) a 98 anos e dez meses de prisão pelo assassinato, por tê-la mantido em cativeiro por mais de 100 horas em Santo André, no ABC paulista, e por outras dez acusações. O músculo cardíaco jovem e vigoroso, doado pela família da garota, deu à tecelã paraense Maria Augusta Silva dos Anjos, de 42 anos, a liberdade que ela não conhecia.
Nunca, em quase quatro décadas marcadas por uma grave doença congênita no coração, Maria Augusta soube o que era andar, sem ajuda, sem rumo, por onde bem entendesse. Hoje vence com facilidade os 63 degraus que separam a porta de seu apartamento modesto, num prédio de três andares sem elevador, da calçada de uma das mais movimentadas ruas dos Jardins, em São Paulo.
Desce e sobe aquelas escadas várias vezes ao dia. É um acontecimento. Com mais 219 passos largos chega à Avenida Paulista. De lá, se enfia no metrô sozinha e percorre sete estações até se misturar à multidão da Rua 25 de Março, o paraíso do comércio popular paulistano. É um novo habitat para a paraense que cresceu retraída e isolada por força das circunstâncias. Até os 15 anos, viveu na Ilha de Marajó. Ia à escola carregada nos braços pelos adultos e escoltada pela irmã Adriana, dois anos mais nova. Os colegas se assustavam com a menina de dedos inchados, unhas e lábios roxos, que sofria desmaios frequentes. Alguns diziam que a doença era contagiosa e aconselhavam os demais a manter distância. “Hoje, dizem que isso é bullying. Eu chamava de rejeição. Vivia sorrindo para não preocupar ainda mais minha família, mas no fundo era uma menina triste.”
No Pará, Maria Augusta foi desenganada por vários médicos. Até que um deles decidiu procurar a ajuda dos colegas do Hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo. Quando o drama de Eloá mobilizou o Brasil, Maria Augusta aguardava um coração na fila de transplante havia dois anos e três meses. Passava os dias trancada no apartamento. Não conseguia sequer tomar banho sozinha. Quando precisava sair para tomar um pouco de ar, era carregada nos braços pelo cearense Stênio Garcia Alves de Lima (então namorado e hoje marido). “Minha família toda acompanhava pela TV o sofrimento da Eloá e orava por ela”, diz Maria Augusta. “Nunca imaginei que aquilo terminaria em morte, muito menos que os órgãos seriam doados e eu beneficiada.”
No dia em que Eloá morreu, Maria Augusta ocupava a terceira posição na lista do hospital. O órgão não era compatível com os dois primeiros. Maria Augusta foi chamada e preparada para o transplante. Quando a cirurgia acabou, era a manhã de seu aniversário de 39 anos. A repercussão do caso impediu que a regra do anonimato nas doações fosse seguida. Maria Augusta agradeceu. O desejo dela sempre foi conhecer a família de seu eventual doador. Foi assim que ela e Ana Cristina Pimentel da Silva, mãe de Eloá, se aproximaram. “Ela sempre me abraçou com um carinho forte, especial”, diz. As duas famílias se encontraram várias vezes. Maria Augusta passou um fim de semana na casa da mãe de Eloá. Ana Cristina foi hospedada no Pará pelos pais de Maria Augusta. Na semana passada, quando as notícias sobre o julgamento de Lindemberg tornaram vívida a lembrança de Eloá, Maria Augusta teve vontade de telefonar para Ana Cristina. Desistiu – para não ser inconveniente e, principalmente, por não saber o que dizer.
Quando estão a sós, Stênio desafia a mulher a solucionar uma questão que mobiliza filósofos, especialistas em bioética, médicos, psicólogos, religiosos e quem mais tiver sangue correndo nas veias e neurônios fervilhando na cabeça:
– Preta, o que você sente quando vê as imagens da Eloá nesse desespero e sabe que é o coração dela que está batendo em seu peito?
Maria Augusta responde sem a pretensão de encerrar o assunto ou de dar uma resposta definitiva. Seus sentimentos são dúbios. “Sinto muita tristeza por ela e, ao mesmo tempo, uma grande felicidade por estar vivendo tão bem. Se não fosse aquele sequestro, provavelmente eu estaria morta. Não sei o que pensar. É um dilema que não consigo resolver.”
No prediozinho da região da Paulista, ocupado basicamente por migrantes que, como Estênio, trabalham num restaurante, todos têm curiosidade pela história de Maria Augusta. “Ficam intrigados, querem saber se minha personalidade mudou.” Ela diz que é a mesma, mas a motivação para se cuidar é outra. Agora, procura se vestir com peças da moda e realça, com mechas douradas, o brilho dos cabelos de marajoara. “Maria Augusta reviveu. As avaliações cardiológicas e as biópsias do músculo cardíaco demonstram que o estado de saúde dela é excelente”, diz o cardiologista Antonio Alceu dos Santos, do Hospital Beneficência Portuguesa. O único sinal evidente de que, graças a Eloá, Maria Augusta pôde começar de novo é a cicatriz vertical entre os seios. A ponta superior do corte escapa do decote. Ela não se preocupa em escondê-lo. Por aqueles 10 centímetros, entraram a esperança e a energia juvenil de quem tudo pode. “Agora quero aprender a nadar e a andar de bicicleta.”
GLOBO.COM
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